Céu

Passo lento e solitário
Avanço pela ruela abaixo
Danço ao som da música dum acordeão que passa
Salto feliz e apoio-me num candeeiro qual Gene Kelly
Bipolar, fico triste e desesperado
A música que ouço é outra
Mais arrastada, um piano sorrateiro que vai trepando para dentro do meu cérebro e consequentemente afectando o meu coração.
Rastejo pela ruela abaixo e sinto-me morrer
Agarro-me aos pés das damas que passam, elas pontapeiam-me como se de um cão vadio se tratasse.
Deito-me de costas olhando o céu.
“Belo”

Pisam-me, pisam-me como se fosse um tapete estendido para as damas não molharem os finos pés nas poças de água.
Pisam-me os senhores que passam engravatados e atarefados.
Pisam-me e eu olho o céu.
Desapareço silenciosamente sempre com o som do piano ao fundo (a mutilar-me o cérebro)
Calçada
Sou apenas pedras de calçada
Frias
Duras
Chorando quando chove e pregando rasteiras às damas impertinentes.
Olho o céu.
Resigno-me e sou pisado
Prometeu!

jazz é...

Jazz são aqueles tons de roxo que sobem as paredes, aquele som disforme que se infiltra pelos ouvidos dentro, aquela distorção atroz que no entanto soa bem. Jazz é erro e correcção. Jazz é a música.

Pó.

Domingo, 31 de Janeiro

Sai da igreja mesmo antes do padre acabar o ritual. "Estou-me nas tintas para aquilo. Só lá vou mesmo por causa deste maldito peso na consciência." Saiu em passo apressado. Mesmo tendo ficado nas últimas filas não deixou de chamar à atenção de umas velhas beatas que fingiam rezar. Se o olhar matasse teria sido morto nesse exacto momento. "Estou-me nas tintas. Sei que tenho que o matar. É nisso que tenho que me concentrar. Mas não será hoje. Tenho que preparar tudo muito bem. E afinal matar ao Domingo…" Foi para casa. Olhou o apartamento em volta… vazio. Pensou em matar-se nesse mesmo momento, desistir de tudo, de todas as mentiras a que alguns chamam vida, da família que não tinha, dos amigos que não tinha, da mulher que não tinha, do eu que já não tinha. Nem isso. "eu?" Ri-se. Primeiro tinha que o matar. Se tudo lhe parecia vazio e sem interesse ou sentimento, porquê o peso na consciência? Não era por pena dos que tinha matado, mas por pena de si. Peso na consciência por ter chegado aquilo. Aquela casa, qualquer casa, qualquer espaço em que as paredes o tornassem em solidão e vazio… Saiu de casa sem pensar mais. Passou pela vizinha que o olhou de esguelha. Nem respondeu ao cumprimento. "Hipócritas. São todos uns hipócritas. Cães." Em passo acelerado, olhar vazio, errante mas convicto no andar, chega ao parque. "Lá estavas tu, impávido e sereno, como se nada te pudesse perturbar. Com a família. Rias-te, rias-te muito, beijavas a tua esposa, brincavas com as tuas crianças, cumprimentavas toda a gente com uma estúpida gargalhada e com olhares de orgulho e ostentação." A raiva advinha da inveja. Secretamente imaginava-se naquele papel, rir-se-ia, rir-se-ia muito, beijaria a sua esposa, brincaria com as suas crianças, cumprimentaria toda a gente com sonoras gargalhadas, não se importando se parecesse estúpido, pois com orgulho e ostentação iria olhar para quem por ele passasse. "O pior disto tudo é que eu compreendo a tua alegria e não posso tê-la. Odeio-te por isso."

Segunda-feira

"Lá estavas tu a sair do trabalho impávido e sereno, como se nada te pudesse perturbar. Estou a tornar-me repetitivo. É já a segunda vez esta semana. Muito te rias com os teus amigos! Que otário! E se acontecesse alguma coisa aos teus filhos ou à tua mulher? Bem que gostava de lhe provar a boca… Mas não. Só te matarei a ti. Afinal tenho escrúpulos… (?) Odeio-te ainda mais por aquilo que me fazes sentir e pensar. Odeio este ódio, mas não mais do que te odeio a ti ." Esperou que ele estivesse sozinho, sentado no carro. Fumava um cigarro procurando parecer natural. Não deixou de fazer a inevitável metáfora. Ele próprio era como um cigarro que se consumia e se ia desfazendo em cinzas. Era um veneno já sem vício de vida. E assim se ia consumindo em cinzas e fumo e pouco fogo. Tinha também a consciência que toda a sua figura se assemelheva a um típico estúpido e barato assassino de um típico estúpido e barato policial. "Estou-me nas tintas. Seja qual for a forma que eu o mate o resultado é o mesmo. Sortudo… Muita gente. Muita confusão. Vai-te rindo…"

Terça-feira

No bar ouve-se Queen – “Another One Bites the Dust”. A empregada, dançava e avançava para ele e a sorrir; trouxe-lhe o brandy. "Será que…? Não foi um sorriso de circunstância. Será que…? Bebe mais um copo e esquece. Já viveste o suficiente para não acreditar nesses sorrisos. Hipócritas. Raio de vida. De facto sou mais um que come pó. Tudo me sabe a terra e nada. Nada me satisfaz. Nem nada nem ninguém me quer satisfazer….Entraste no bar. Entraste no bar! Lá estavas tu impávido e sereno, como se nada te pudesse perturbar. Estou a tornar-me repetitivo. É já a terceira vez esta semana. O palhaço entrou no meu bar! Quando eu lá estava! Porquê? Para gozares comigo? A empregada sorriu-te, retribuíste o sorriso e começam a falar. Para gozares comigo… Cães. Mais uma vez, muita gente. Se tu soubesses o que te espera… E ris, alto… Bebi o suficiente para conseguir dormir. Mesmo que quisesse não estaria sóbrio para te matar. Aí eu cantaria a plenos pulmões: “Another One Bites the Dust”! Mesmo sendo a morte um pó mais saboroso que aquele que provo agora…."

Quarta-feira

Não sai de casa. Fica na cama a contemplar o tecto. Também era vazio, mas já não os eram seus pensamentos agora vis e sedentos." Lá estavas tu, nos meus pensamentos (!), impávido e sereno, como se nada te pudesse perturbar. Estou a tornar-me repetitivo. É já a quarta vez esta semana. Sai! Sai da minha cabeça. Estás a destruir-me! Mais ainda! Sai!" Vai à varanda, abre a janela, alça a perna e manda-se. Cai. Morre. Que bem que lhe soube. Acorda. Era um sonho. Sim, um sonho. Não foi um pesadelo. Foi um sonho porque para ele tinha tido um final feliz. Mas tinha sido um sonho… e acordou. "Ainda tinha que (sobre)viver mais uns dias…"

Quinta-feira

"Adeus. É hoje! Através do vidro do carro podia vê-lo. Lá estavas tu impávido e sereno, como se nada te pudesse perturbar. Estou a tornar-me repetitivo. É já a quinta vez esta semana!" Ri-se. Já não se ria há muito. Até estranhou. "Mas nada disso importava. Tu rias-te. E não estavas só. Como eu. Rias-te com os teus comparsas, alegremente, sem sequer pensar no triste destino que te esperava. Liguei o rádio para descontrair. Aumentei o volume. Calcei as luvas. Esperei que ficasses só. Momento certo. Abro a porta do carro e digo:

“Amigo!”

Tu viras-te e recebes com nojo um beijo que ninguém desejava. Cais redondo no chão. Tarde de mais. Estás morto. E agora eu também."

Ideia base: Simão Miranda

Desenvolvimento e Execução: Ruben Loup Chama