Tom Waits, Erros e Cieiro

Não faço ideia se os músicos se afastam tanto da sua música como eu da minha escrita. Na verdade, sendo uma das poucas coisas que me dá verdadeiro ânimo, é estranho e difícil perceber o porquê do meu afastamento continuado. Talvez seja um prazer masoquista, daqueles meio catárticos – afasto-me e desanimo, aproximo-me e volto a animar para logo depois me afastar e voltar a desanimar.
Não há razão lógica mas acontece. Creio que é um distanciamento saudável, daqueles para pensar se realmente vale a pena. Continuo sem obter uma resposta, nem estou à espera que ma dêem. Obtenho sim, respostas. Sempre que “pego” volto a obter uma resposta que me satisfaz no momento e isso chega-me, posso dizê-lo.
Chega-me para ir rabiscar umas coisas com interesse apenas “relativo” e principalmente interesse “próprio”.
Posso dizer em tom de desculpa que não tenho vontade de escrever neste teclado incómodo que muitas vezes me obriga a repetir os caracteres porque não entraram à primeira, e não sendo a paciência uma virtude que me tenha sido destinada, farto-me com rapidez (talvez esta “nota” não conheça mesmo o seu fim). Posso também acrescentar que a vontade foi mais forte que a falta de paciência e aqui estou eu a escrever em tom de conversa convosco (não sabendo até quando esse rácio de vontade/falta de paciência vai resistir).
Voltando à conversa do músico, agradecia que se algum de vocês me pudesse dar uma resposta concreta, não o fizesse pois isso ia estragar a capacidade imaginativa que agora coloca um Tom Waits três meses sem tocar num instrumento musical, sem sequer pensar nele para passado esse período de tempo pegar em qualquer coisa, juntar-lhe o som baço das suas cordas vocais cheias de tabaco e criar uma peça digna de registo (talvez uma merda, mas ainda assim digna de registo).
Agradecia que se encontrassem erros nesta pequena peça digna de registo (certamente uma merda, mas ainda assim digna de registo) que não mo dissessem porque sou bastante susceptível a críticas negativas.

Porque é que será que mesmo tendo os lábios gretados de tanto cieiro e usando um batom apropriado para o facto penso sempre que o mesmo é um acessório feminino?

No Gira-Discos II


Nesta segunda edição da nossa nova rubrica tomei a liberdade de trazer um convidado para dar alguma cor a este blog tão cinzentão; convidado esse que sempre admirei pelo bom gosto e pelo enorme conhecimento que detém em relação a boa música (e canta bem também, peçam-lhe para cantar)
Sem mais demoras deixo-vos com Nuno Pontes e The Dark Side of the Moon dos sobejamente conhecidos Pink Floyd


Alguns consideram-no “um dos melhores álbuns de sempre”. Outros consideram-no “o início da fase conceptual dos Pink Floyd”. Outros só conhecem o álbum porque tem “uma capa preta e um triângulo esquisito no meio, com um arco-íris a sair de lá”. É um prisma triangular, meus caros...
O valor de The Dark Side Of The Moon reside não só no seu conceito, mas também nas letras, da autoria de Roger Waters, que aproveita para fazer uma reflexão sobre a vida e as suas vicissitudes. Desde o nascimento (em Speak To Me / Breathe) até à morte (em The Great Gig In The Sky), os Pink Floyd fazem um percurso que passa pela forma como o tempo pode dominar as nossas decisões (Time), o consumismo que nos rodeia no dia-a-dia (Money), e os nossos problemas pessoais (Us And Them).
Este também é o primeiro álbum que apresenta uma homenagem, digamos assim, a Syd Barrett, através da letra de Brain Damage. O álbum termina da melhor forma, com Eclipse, cuja letra pode ser entendida de várias formas, como por exemplo, uma forma de observarmos o modo como vemos as coisas.
The Dark Side Of The Moon é complexo? Ao nível das letras, o tema é complexo. Musicalmente... Bom, se separarmos cada canção, não é tão complexo como isso. É fácil, para uma boa banda, fazer algo ao nível musical de Money, Us And Them ou Time, não colocando em causa o valor e qualidade dos exemplos referidos. Porque o verdadeiro ponto forte deste álbum é a forma como uma canção leva à canção seguinte, até ao final do álbum. É pela ordem estipulada que o álbum funciona. Não vale a pena começar com On The Run e terminar com Any Colour You Like. Não faz sentido, porque, até conceptualmente, Speak To Me / Breathe é o início, e Eclipse, como o título indica, é o fim. Não é apenas o fim. Esse fim está reservado a The Great Gig In The Sky. Eclipse é UM fim, e o fim ideal para um álbum como este.
O álbum que marcou a carreira dos Floyd. Seguir-se iam os musicalmente e conceptualmente mais complexos Wish You Were Here, Animals e a obra-prima The Wall. E a separação mais psicologicamente violenta da história da música. Foi o princípio de algo bom... mas também o princípio do fim de um grupo.
As palavras não chegam para apreciar este álbum. É necessário ouvi-lo. Boa audição!

Sr. Dr. Nuno Pontes para além de melómano é também humorista, tendo já escrito inúmeros sketches para teatro amador, radialista tendo feito comédia para rádio online e crítico de todos os temas e mais alguns como podem constatar semanalmente na sua rubrica ThematicMondays.
Nuno Pontes conta ainda com os blogs: http://cronicadodia.blogs.sapo.pt e http://etervirtual.blogspot.com/ onde dá azo aos seus devaneios.

No Gira-Discos


“Gira-Discos?” estarão vocês a pensar. “Já ninguém usa isso.”
Estou bem consciente disso, embora existam ainda uns tantos entusiastas que adoram o som meio arranhado da agulha no vinil, mas não é disso que esta nova rubrica trata.
“No Gira-Discos” é só um nome meio pomposo e pseudo-vintage que se arranjou como fachada para vos poder impingir a música que realmente gosto e quem sabe vocês possam também vir a gostar.
Esta rubrica não vai ter periodicidade fixa, sendo esta definida pela vontade e disponibilidade dos autores.
Mas sem mais delongas vamos passar ao primeiro disco que coloquei hoje no meu gira-discos de 4Gb de RAM e 500Gb de disco rígido.

Apresento-vos a mais recente promessa do jazz cantado mundial, Roberta Gambarini.
Roberta cresceu no seio de uma família italiana de Turim que sempre esteve muito ligada ao jazz e por isso Roberta desenvolveu o seu gosto musical desde muito cedo.
Aos 17 anos já cantava em vários bares no Norte de Itália e com 18 anos decidiu perseguir o seu sonho de ser cantora de jazz e rumou a Milão.
Desde 1998 que se mudou para os Estados Unidos e aí tem desenvolvido a sua carreira, actuando com nomes grandes do jazz actual como Herbie Hancock e Hank Jones.
Descrita com a nova Ella, Sarah Vaughan ou Carmen McRae tem o seu primeiro album editado em 2006 e desde então tem encantado críticos e aficionados um pouco por todo o mundo.

O disco que vos trago é já o seu terceiro e está nomeado para os 2010 GRAMMY'S como BEST JAZZ VOCAL ALBUM. 
“So In Love” é um disco bastante multifacetado e ecléctico onde Roberta canta maioritariamente em inglês mas não abandona as suas origens, cantando a belíssima Estate em italiano.
De referir também uma interpretação magistral de Over The Rainbow e da refrescante You Ain’t Nothing But a Jamf onde Gambarini mostra todo o potencial da sua voz, com improvisações de arrepiar os cabelos.
Mas a música é para ser ouvida:
Senhoras e Senhores
 Roberta Gambarini - So In Love (2009)

Teorema de Pitágoras


Estava num discreto bar, um homem bem apessoado sentado numa mesa a beber um bem encorpado whisky quando ao longe, ao balcão, vislumbra uma bem composta menina com os seus 20 anos e pouco e pouca discrição, diga-se.
Ora, o dito homem decide levantar-se da sua mesa e iniciar a sua incompleta busca pelo insaciável.
Aproxima-se da menina e faz um pequeno sinal ao barman que é prontamente reconhecido por este como o sinal de “serve um bebida a esta tipa que eu estou a tentar deitar numa das 5 camas do meu apartamento de 5 quartos, 2 casas de banho e um hall amplo todo repleto de mármore italiano importado, que pode ser que te dê uma gorjeta choruda”.
A menina acenou ao discreto senhor com um ar meio comprometido, meio exótico, meio provocante (o ar da rapariga tem 3 meios). Um ar de uma possível lolita fácil que ele poderá inclusive alternar entre uma cama e outra.
O gentil senhor aproxima-se, com os seus pesados 35 anos disfarçados pela sua profissão, e diz para a menina a frase de engate que nunca lhe havia falhado

 - Sabias que, num triângulo rectângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos?

A doce e cândida moça olha para ele com ar de medusa infantil, como que o desejando e ao mesmo tempo fulminando com o olhar.
O nobre alazão não cabe em si de contente após uma nova gloriosa conquista e enquanto tira a carteira de pele de cavalo do bolso do seu fato feito à medida a angélica menina brinda-o com um beijo na face e diz:

 - Até logo pai.

Writer's Block


Não me sai nada há que tempos e a culpa é tua, por me toldares a visão.
Se ao menos saísses da frente com essa tua beleza inebriante.
Com o teu corpo voluptuoso
Com o teu espírito viciante…
Mas não… insistes em levar o meu tempo emprestado para não mais o devolveres.
E eu insisto em olhar-te e deixar-me ensombrar por ti, como se de grilhetas o teu olhar se tratasse.

Até quando?
Até quando durará esta sensação, este querer e não conseguir, este tentar e não poder?

Até tu, com a tua beleza inebriante, o teu corpo voluptuoso e o teu espírito viciante decidires virar-te de frente para mim e dizeres

“Acabou”

Amor? Que saberão dele todos esses escritores amatórios?

"(...)O amor, sim. Amor? Dizem amor? Que saberão dele todos esses escritores amatórios, e não amorosos, que dele falam e querem excitá-lo em quem os lê? Que sabem dele os mestres das letras? Amor? Não amor, mas antes , melhor, carinho. Isso de amor – dizia Ramiro para  si mesmo – tem sabor a livro. Apenas no teatro e nos romances se ouve «eu amo-te»; na vida da carne, sangue e ossos o profundo «quero-te!», e guardando-o mais profundo ainda. Amor? Não, nem sequer carinho, mas sim algo sem nome e que se não diz por se confundir isso com a própria vida. A maior parte dos cantores amatórios sabem de amor o que de oração sabem as beatas. Não , a oração não é bem uma coisa que tenha de se cumprir a tais ou a tais horas, em lugar afastado e recolhido e em determinada posição, mas é um modo de fazer tudo devotamente com toda a alma e vivendo em Deus. Oração deve ser o comer, e o beber, e o passear, e o brincar, e o ler, e o escrever, e o conversar, e até o dormir e o rezar tudo, e a nossa vida um contínuo e mudo «faça-se a Tua vontade», e um incessante «Venha a nós o Vosso reino!», não apenas pronunciados, nem mesmos pensados, mas sim vividos. Assim ouviu uma vez Ramiro a oração a um santo homem religioso da qual passava por mestre, e assim o aplicou, depois, ele próprio ao amor. Pois o que sentira por sua mulher e a ela o cingia, via bem, agora que ela se fora, que se lhe chegou a confundir com o rotineiro decorrer da vida diária, que o respirara nas mil insignificâncias e bagatelas do viver doméstico, que lhe foi como ar que se respira e pelo qual se não dá, mas sim nos momentos de angustiosa asfixia, quando nos falta. E agora asfixiava-se Ramiro, e a dor da sua viuvez recente revelava-lhe todo o poder do amor passado e vivido.(...)" - assim falava o viúvo Ramiro sobre o amor, recordando a sua Rosa - in Tia Tula de Miguel de Unamuno.

Circuntâncias

Ele acorda. Literal e metaforicamente. Olha para si. Ouve o que se passa à sua volta. Lembra-se como foi o dia anterior. " 'Eu sou eu e a minha circunstância'... Alguém que me arranje circunstâncias, por favor!". Num vazio percebe que está farto. Num golpe de desesperada esperança percebe que está a precisar de alguma coisa. "Que raios! o quê?" Percebe. Ele olha para a janela, esse símbolo do futuro e percebe. Ele quer ir de caravelas fora, por mares e ares e terras nunca antes por ele navegados, voados, andados. Quer descobrir outras tágides que não as do Tejo, outras areias que não as deste deserto, outras margens que não as desta costa. Mas sempre bem; longe da Ilha dos Amores. Quer ir à conquista não de terras ou especiarias, mas de outras pessoas, outros cheiros, outros risos, outros olhos... Quer ir mesmo que seja ele próprio a soprar o vento nas velas, mesmo que os remos sejam as suas próprias mãos e o seu coração o leme. Quer ir, partir, dançar e cantar, rir! Quer ir para todo lado menos ficar aqui nesta terra de memórias alegres que apenas deixam saudade e não realidade. Quer ir e não para trás olhar, para não se transformar em sal, tal seriam as lágrimas. Quer ir e um dia vai, sem deixar recado. Ou talvez passe pelo Facebook a avisar. Mas vai. Um dia destes vai. Um dia destes. Um dia. Vai. E foi. Agora faltas tu. Acorda. Literal e metaforicamente. Olha para ti. Ouve o que se passa à tua volta. Lembra-te como foi o teu ontem. Eu sou eu e a minha circunstância? Faz as circunstâncias.

vou já acordar


Insónias e os minutos que as consomem
Aquele tempo que nos foi destinado mas que mal soubemos aproveitar
Aquele tempo em que passando apenas um tempo parece que muitos mais tempos já por nós passaram.
Aquele tempo em que me vens à memória incessantemente
O tempo em que perco tempo a pensar em ti, incessantemente
O momento em que contigo, penso que estou sem ti
O momento em que me perco em ti e penso
dormir? para quê? Vou já acordar
Incessantemente, penso que
Nada me vai valer quando
Eu estiver em ti. E aí vou dizer:
Sabes? não vale a pena, vou já acordar

XX:00


Vou observando o relógio enquanto o tempo passa
Com ele vão avançando as marcas significativas que deixaste em mim
Vai avançando e desaparecendo toda aquela mágoa que te guardo
Todo o sentimento que nutro
Todo o amor eterno que afinal dura um momento (este)

Ouço um piano ao longe tocar o nosso caminho tortuoso
Ouço outro piano ao longe tocar o nosso caminho leve
Ouço um violino rasgar-me os tímpanos com tudo aquilo que te disse
Ouço outro violino – gentil – tocar tudo aquilo que te disse


Prestes
Prestes a dormir reconfortado
Olho para o relógio
XX:59

Está prestes
XX:00

E eis que o ciclo recomeça

Era uma vez dois colegas que tiveram a triste ideia de fundar um blog... e lá vão 3 anos!


3 anos de Ideias?
Já 3 anos?
Pois é, nossos caros e fiéis leitores, mais uma vez o vosso querido (cof cof) blog fez anos e nós deixámos passar a ocasião em branco, mas antes tarde que nunca!
Decidimos, pois, para esta especialíssima data, convidar alguns dos mais fiéis (e eruditos) seguidores deste vosso blog para nos brindarem com uma opinião/reflexão acerca de 3 anos a preto e branco. Desde já a nossa enorme gratidão a eles pela amizade e lealdade que nos demonstram por cada número que aumentam no contador e, já agora, por serem nossos companheiros para lá deste espaço virtual, destas paredes a que alguns chamam www.
Podemos dizer que, com algum humor negro e certamente com uma grande pálida ironia estas reflexões são a natural sequência do que o Ideias pretende ser.

("Preencha neste espaço em branco a tinta preta" aquilo que o Ideias deve ser ou/e é para si)

Resta-me pois congratular toda a malta que nos acompanha.

Viva o Ideias e que venham mais 3 anos ainda melhores que os passados"
Para ver os textos dos nossos convidados clique no Ler Mais abaixo
 

jazz é (II)

“1 vaso 2 hielos y J&B.... maldito jazzz.......”


E assim deixo-me ficar no meu velho cadeirão

Enfeitiçado pelas cores cintilantes que trepam pelas paredes

Pelo som disforme que se infiltra na alma conforme o estado de espírito.

Pelo gato que me trepa o colo e se deixa adormecer aninhado nas notas musicais reconfortantes e incomodamente confortáveis


E eu bebo o maldito J&B ao som do jazzz gelado.

Se sou feliz?

Com a lareira aos pés, com o J&B no copo?

Talvez


Com jazz nos ouvidos?

Com aquela constante distorção?

(“there was a boy”)


Porra…

morro feliz.

Jamie Cullum – Nature Boy

À procura da outra chama prometeica...




À procura de ti, minha outra metade,

Me lanço em precipícios de vida.

Falham-me o caminhar, o ar, tudo.

E mudo, caio... caio... mais depressa que as lágrimas.


À procura de mim, minha outra metade,

Olho para cima e grito numa bipolaridade de fé e descrença.

E essa doença me consome em vontade de certezas e esquecimentos e sofrimentos e pensamentos…


“Venha de lá essa outra chama prometeica!” disse eu, um dia, com um sorriso de alegria certa e sonhadora nos lábios! Mas Prometeu… e não cumpriu.


À procura do todo que serei e ainda não sou, me encontro.

Céu

Passo lento e solitário
Avanço pela ruela abaixo
Danço ao som da música dum acordeão que passa
Salto feliz e apoio-me num candeeiro qual Gene Kelly
Bipolar, fico triste e desesperado
A música que ouço é outra
Mais arrastada, um piano sorrateiro que vai trepando para dentro do meu cérebro e consequentemente afectando o meu coração.
Rastejo pela ruela abaixo e sinto-me morrer
Agarro-me aos pés das damas que passam, elas pontapeiam-me como se de um cão vadio se tratasse.
Deito-me de costas olhando o céu.
“Belo”

Pisam-me, pisam-me como se fosse um tapete estendido para as damas não molharem os finos pés nas poças de água.
Pisam-me os senhores que passam engravatados e atarefados.
Pisam-me e eu olho o céu.
Desapareço silenciosamente sempre com o som do piano ao fundo (a mutilar-me o cérebro)
Calçada
Sou apenas pedras de calçada
Frias
Duras
Chorando quando chove e pregando rasteiras às damas impertinentes.
Olho o céu.
Resigno-me e sou pisado
Prometeu!

jazz é...

Jazz são aqueles tons de roxo que sobem as paredes, aquele som disforme que se infiltra pelos ouvidos dentro, aquela distorção atroz que no entanto soa bem. Jazz é erro e correcção. Jazz é a música.

Pó.

Domingo, 31 de Janeiro

Sai da igreja mesmo antes do padre acabar o ritual. "Estou-me nas tintas para aquilo. Só lá vou mesmo por causa deste maldito peso na consciência." Saiu em passo apressado. Mesmo tendo ficado nas últimas filas não deixou de chamar à atenção de umas velhas beatas que fingiam rezar. Se o olhar matasse teria sido morto nesse exacto momento. "Estou-me nas tintas. Sei que tenho que o matar. É nisso que tenho que me concentrar. Mas não será hoje. Tenho que preparar tudo muito bem. E afinal matar ao Domingo…" Foi para casa. Olhou o apartamento em volta… vazio. Pensou em matar-se nesse mesmo momento, desistir de tudo, de todas as mentiras a que alguns chamam vida, da família que não tinha, dos amigos que não tinha, da mulher que não tinha, do eu que já não tinha. Nem isso. "eu?" Ri-se. Primeiro tinha que o matar. Se tudo lhe parecia vazio e sem interesse ou sentimento, porquê o peso na consciência? Não era por pena dos que tinha matado, mas por pena de si. Peso na consciência por ter chegado aquilo. Aquela casa, qualquer casa, qualquer espaço em que as paredes o tornassem em solidão e vazio… Saiu de casa sem pensar mais. Passou pela vizinha que o olhou de esguelha. Nem respondeu ao cumprimento. "Hipócritas. São todos uns hipócritas. Cães." Em passo acelerado, olhar vazio, errante mas convicto no andar, chega ao parque. "Lá estavas tu, impávido e sereno, como se nada te pudesse perturbar. Com a família. Rias-te, rias-te muito, beijavas a tua esposa, brincavas com as tuas crianças, cumprimentavas toda a gente com uma estúpida gargalhada e com olhares de orgulho e ostentação." A raiva advinha da inveja. Secretamente imaginava-se naquele papel, rir-se-ia, rir-se-ia muito, beijaria a sua esposa, brincaria com as suas crianças, cumprimentaria toda a gente com sonoras gargalhadas, não se importando se parecesse estúpido, pois com orgulho e ostentação iria olhar para quem por ele passasse. "O pior disto tudo é que eu compreendo a tua alegria e não posso tê-la. Odeio-te por isso."

Segunda-feira

"Lá estavas tu a sair do trabalho impávido e sereno, como se nada te pudesse perturbar. Estou a tornar-me repetitivo. É já a segunda vez esta semana. Muito te rias com os teus amigos! Que otário! E se acontecesse alguma coisa aos teus filhos ou à tua mulher? Bem que gostava de lhe provar a boca… Mas não. Só te matarei a ti. Afinal tenho escrúpulos… (?) Odeio-te ainda mais por aquilo que me fazes sentir e pensar. Odeio este ódio, mas não mais do que te odeio a ti ." Esperou que ele estivesse sozinho, sentado no carro. Fumava um cigarro procurando parecer natural. Não deixou de fazer a inevitável metáfora. Ele próprio era como um cigarro que se consumia e se ia desfazendo em cinzas. Era um veneno já sem vício de vida. E assim se ia consumindo em cinzas e fumo e pouco fogo. Tinha também a consciência que toda a sua figura se assemelheva a um típico estúpido e barato assassino de um típico estúpido e barato policial. "Estou-me nas tintas. Seja qual for a forma que eu o mate o resultado é o mesmo. Sortudo… Muita gente. Muita confusão. Vai-te rindo…"

Terça-feira

No bar ouve-se Queen – “Another One Bites the Dust”. A empregada, dançava e avançava para ele e a sorrir; trouxe-lhe o brandy. "Será que…? Não foi um sorriso de circunstância. Será que…? Bebe mais um copo e esquece. Já viveste o suficiente para não acreditar nesses sorrisos. Hipócritas. Raio de vida. De facto sou mais um que come pó. Tudo me sabe a terra e nada. Nada me satisfaz. Nem nada nem ninguém me quer satisfazer….Entraste no bar. Entraste no bar! Lá estavas tu impávido e sereno, como se nada te pudesse perturbar. Estou a tornar-me repetitivo. É já a terceira vez esta semana. O palhaço entrou no meu bar! Quando eu lá estava! Porquê? Para gozares comigo? A empregada sorriu-te, retribuíste o sorriso e começam a falar. Para gozares comigo… Cães. Mais uma vez, muita gente. Se tu soubesses o que te espera… E ris, alto… Bebi o suficiente para conseguir dormir. Mesmo que quisesse não estaria sóbrio para te matar. Aí eu cantaria a plenos pulmões: “Another One Bites the Dust”! Mesmo sendo a morte um pó mais saboroso que aquele que provo agora…."

Quarta-feira

Não sai de casa. Fica na cama a contemplar o tecto. Também era vazio, mas já não os eram seus pensamentos agora vis e sedentos." Lá estavas tu, nos meus pensamentos (!), impávido e sereno, como se nada te pudesse perturbar. Estou a tornar-me repetitivo. É já a quarta vez esta semana. Sai! Sai da minha cabeça. Estás a destruir-me! Mais ainda! Sai!" Vai à varanda, abre a janela, alça a perna e manda-se. Cai. Morre. Que bem que lhe soube. Acorda. Era um sonho. Sim, um sonho. Não foi um pesadelo. Foi um sonho porque para ele tinha tido um final feliz. Mas tinha sido um sonho… e acordou. "Ainda tinha que (sobre)viver mais uns dias…"

Quinta-feira

"Adeus. É hoje! Através do vidro do carro podia vê-lo. Lá estavas tu impávido e sereno, como se nada te pudesse perturbar. Estou a tornar-me repetitivo. É já a quinta vez esta semana!" Ri-se. Já não se ria há muito. Até estranhou. "Mas nada disso importava. Tu rias-te. E não estavas só. Como eu. Rias-te com os teus comparsas, alegremente, sem sequer pensar no triste destino que te esperava. Liguei o rádio para descontrair. Aumentei o volume. Calcei as luvas. Esperei que ficasses só. Momento certo. Abro a porta do carro e digo:

“Amigo!”

Tu viras-te e recebes com nojo um beijo que ninguém desejava. Cais redondo no chão. Tarde de mais. Estás morto. E agora eu também."

Ideia base: Simão Miranda

Desenvolvimento e Execução: Ruben Loup Chama

clarividência

Contemplando a tua beleza sigo o meu caminho rumo à perdição.

E no entanto é-me dificil controlar

controlar a beleza

controlar o caminho

controlar-me a mim e a ti

é impossível!


E enfim, sigo descontrolado o caminho rumo à perdição clarividência

onde ao fundo do túnel estarás tu, bela, para me dizer


“chegaste por fim”

Porque Hoje é Sábado... Vinícios de Moraes

"O dia da Criação

Macho e fêmea os criou.

Gênese, 1, 27
I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.


II
Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado


III
Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na
terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda
e missa de
sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das
águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em [cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e [sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado."
Vinícius de Moraes


Logo após, qual Brutus, o Homem espeta uma faca nas costas de Deus. Com isto vai-se suicidando em suaves prestações. Mas falemos de outras coisas! Afinal hoje é sábado!
Mas amanhã é domingo...