Mentiu


Vou acordando lentamente deste breve mas pesado sono.
Pouca a pouco vou-me apercebendo de que provavelmente seria melhor que nunca tivesse acordado…
Cheguei mesmo a pensar que dum sonho se tratasse pois tudo aquilo me parecia demasiado surreal.

Todo o ambiente daquele vulgar comboio se havia mantido, apenas a aparência dos demais transeuntes se tinha alterado.
Duma forma estranha todos eles pareciam agora árvores… mas falavam e vestiam como se normais fossem.

Segui sentado no meu lugar sem demonstrar grande espanto, coisa que de facto se mostrou difícil, porque, na verdade, todos pareciam olhar para mim como se o estranho fosse eu no meio de todo aquele mato falante.
Respeitando as regras da boa educação lá consegui sair dali, com uma certa dificuldade devido às mais variadas ramificações que todos aqueles corpos de madeira tinham.

Saí…

Não vi nada… nem ninguém…
Tinha sido o único a sair naquela paragem…

Depressa constatei que tudo estava tão semelhante ao habitual… Excepto porém, o nome da paragem e consequentemente o nome da terra.

Olhei em volta para ter a certeza de que não me tinha enganado na paragem.
Depressa vi que o local era de facto o mesmo…

Aos poucos, fui-me dando conta duma mudança radical.
O vão de escadas tinha sido convertido num poço para onde vários anões de gesso saltavam alegremente sempre com aquela cara sinistra.

Passado pouquíssimo tempo comecei a sentir que aquele poço sempre lá havia estado e que era completamente normal existirem anões de gesso a saltar para dentro dele!
Saltei também e senti-me a cair no vazio…
Sempre a cair…

Cair…

Aos poucos…
Sempre aos poucos…
Comecei a sentir a perda da materialidade do corpo.

Mas, sempre a cair…
Sempre…

A queda tornou-se rotina… um hábito…
Como não ter corpo se tornou também um hábito…

De repente sinto um golpe forte sem dor…
Golpe no que me faz escrever…
Golpe no que me faz pensar…
Golpe na mente…

Na Mente…
mente…



Mente!

A Mente mente…
e…

Mentiu!

4 pseudo-comentários:

Sofia disse...

brutal! tu adoras tudo o que tenha a ver com comboios. apesar de este acabar por não ter nada a ver com comboios.
mas eu gosto.
está francamente bom,
genuinamente interessante
e claramente TEU.

e isto foi o que a minha mente me pediu para escrever.
e a minha mente não mentiu.

Niusha disse...

100% mente de Simão.

Anónimo disse...

Não sei como ainda não te veio à ideia, atares a tua Desdémona aos carris! Isso é que era!!!!
Mas infelizmente bastará dares-lhe uma pisadela para teres a honra lavada!
Abraço.

EGP disse...

Construção inteligente, peca o início do texto. Bom.

Edward Gonçalves Pinto.