Era de manhã. Tão fria que os próprios pinheiros se encolhiam. Acordei com o vento. Zumbia tanto que parecia lamentar a morte de um filho. Passava, desvairado, e, como que errante, embatia em tudo o que visse. Fiquei a ouvi-lo. Senti-me como que embalado naquele pranto. Senti-me arrebatado do resto do mundo. Apenas ouvia aquele arrepiante lamuriar.
O aroma de camomila, típico da minha mulher, prendeu-me à terra. Era isso e a fragrância que as panquecas, acabadas de fazer, lançavam no ar. Senti aquele impulso animalesco que nos impele a partir em busca da presa, neste caso, as panquecas.
Levantei-me, calcei os chinelos, vesti o robe e desci as escadas. Cheguei à cozinha e deparei-me com três doces – a minha mulher, que logo me contemplou com um beijo com sabor a mel, o meu cão, o Bob, e as panquecas pelas quais tanto ansiara.
A minha mulher tinha se esmerado! Aquelas panquecas douradas e redondas, regadas com as primícias do mel, que eu já provara nos lábios da minha mulher, acompanhadas de um leite que, de tão morno e doce, era como o leite que me amamentara durante os meus primeiros tempos de vida...Hum! Desfrutei aquele momento – uma vida quase perfeita. Todas as manhãs, descia do quarto, inspirava o ar impregnado do aroma de camomila da minha mulher, beijava-lhe os seus lábios de mel, brincava com o cão, comia as minhas panquecas e o meio leite morno e, daí em diante, teria a certeza que o dia correria bem.
Mas nessa manhã algo se passava de estranho. Já nem a lareira e o robe eram suficientes para me roubarem o frio. O vento zunia e bradava, parecia que, naquela manhã, juntara todas as suas forças para chorar e espalhar a sua dor. E eu sentia-me triste também. Não compreendia. É como se o vento tentasse compartilhar a sua dor comigo.
Nesse dia houve um incêndio que queimou dezenas de hectares da floresta. Estima-se que morreram queimados vários veados e lobos que não conseguiram fugir. Aquela bela floresta transformara-se num lugar de carnificina; onde outrora viviam animais selvagens, jaziam agora os corpos, que lentamente iam sendo consumidos pelas chamas.
Nesse dia o vento chorou perante a sua floresta de luto.


Anos mais tarde, de manhã, fui acordado. Desta vez não fora o meu fiel amigo vento a acordar-me – passando pela casa, como fazia todas as manhãs – foi a minha mulher, com o seu apetitoso beijo e a sua famigerada fragrância. D’entre os seus dentes de marfim e os seus olhos cintilantes, deslindei algo de diferente, algo de especial, um sorriso tamanhamente alegre – Que se passa mulher?! – perguntei já aflito de tanta ansiedade - Vamos ter um filho! – respondeu num tom meio nervoso. Tudo me pareceu estranhamente fantástico, uma alegria no peito que parecia nem caber dentro de casa.
Passaram-se sete anos e o meu filho era a alegria da casa. Era inteligentíssimo, alegre, educado, feliz, bondoso, meio irrequieto e estava sempre a falar – um espírito da Natureza. Brincávamos muitas vezes juntos, eu ensinava-lhe os trilhos, as fontes, o respeito pelos animais, íamos pescar, corríamos com o Bob... Por vezes passávamos o dia inteiro fora de casa a correr pela floresta, ou porque tinhamos uma doninha enfurecida atrás de nós, ou porque éramos perseguidos por um enxame de abelhas.
Uma vez, enquanto apanhávamos ramos secos para lenha, ouvimos vozes humanas, o que era estranho, pois a aldeia mais próxima ficava a mais de trinta quilómetros. Aproximavam-se furtivamente, como se procurassem algo sem quererem dar muito nas vistas. Parados, escutámo-los a aproximarem-se. Eles não nos viam nem nós os viamos pois estavam ocultos pela folhagem. Pararam. Combinavam algo... De repente ouvem-se motosserras. Era tal chinfrineira que ficámos petrificados. Os pássaros voavam e dava o alarme, viam-se folhas a mexer, animais a fugir e nós ficámos ali. Antes que pudéssemos reparar, já as árvores estalavam e começavam a cair. Caíam de todos os lados. Ali. Aqui. Mais perto. Estamos cercados. Desorientado, agarrei a mão do meu filho e corremos... Mas era tarde de mais. A árvore esmagou-lhe o crânio. Morte imediata. À minha frente. Só quando terminaram o derribar das árvores é que me encontraram. Ali, especado. Atónito. Apenas as lágrimas expressavam a minha dor. Pânico.
Nessa noite chorei. Mas não chorei sozinho. Nessa noite compartilhei a minha dor e o meu pranto com o vento. Juntei a minha tristeza e dor à dele.
Nessa noite a lua estava de luto.

7 pseudo-comentários:

Marta Queiroz disse...

Já te disse pessoalmente.. mas repito, 'Muito bom, escreves muito bem, Rúben.'
Sabes que gosto.
Um beijo @

Sara Caeiro disse...

Fantástico! Estás de parabéns!
Confesso que fiquei mesmo petrificada, "atonita" a olhar para o texto, pois conseguiste transmitir estremamente bem o sentimento!

O problema é que todos os anos morrem milhares de animais da mesma maneira que a criança do texto morreu... O ser humano não sabe mesmo respeitar os outros seres... Só porque estão abaixo dele na cadeia alimentar...

Niusha disse...

Eu sabia que essas noites no Tec davam inspiração.

Anónimo disse...

Bem fiquei sem palavras. Escreves mesmo bem, a sério. Parabéns ruben, está muito bonito.

beijinhos da mónica

Gaius disse...

Também gosto muito Rúben! Parabéns, 16 valores!!! =P Tou a brincar yah! =P

EGP disse...

Muitos parabéns pelo texto: a estrutura está interessante e o final, curto, simples mas de grande potencial expressivo, está muito bem concebido. É pena haver, algures mais para o início do texto, uma certa redundância e repetição desnecessária dos mesmos vocábulos. Contudo está globalmente bom e promissor, caso continues a escrever e a burilar o que escreves com o lirismo que, por vezes, consegues traduzir em palavras.

Até sempre,
Edward Gonçalves Pinto.

Cristina D. disse...

Adorei.. texto profundo e sentido...a dor de perder alguem espiritual ou fisicamente é a pior experiencia... mas tambem nos mostra p quao frageis somos...e que a vida é efémera...